terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Entrevista dada à revista "Mundo Azul" do Conselho Cultural do Futebol Clube do Porto por Francisco José Viegas


“Sou portista na irritação, portista na alegria”

Ser do FC Porto em todos os momentos, desde os mais gloriosos até aos mais difíceis, isto é, essencialmente nos mais complicados. Assim se define Francisco José Viegas enquanto portista. Conhecido do público pelo seu percurso jornalístico (na imprensa escrita, na rádio e em televisão), desempenhou igualmente as funções de professor universitário, mas é sobretudo um escritor versátil que já publicou obres de divulgação, de poesia, de romances, contos, teatro e relatos de viagens. Nascido em Foz Côa, elege o Porto como a sua cidade do coração e de “pano de fundo” para todas as suas obras policiais, assim como o mundo do futebol, em especial do FC Porto.

Mónica Monteiro/texto
(imagens cedidas por José Viegas)

“Antes de tudo, um adepto incondicional do FC Porto” Esta é uma afirmação sua. Podemos começar por aí?
Em matéria de futebol, sim. Incondicionalmente, porque a relação com o clube, com o futebol do clube – mesmo quando a sua qualidade deixa a desejar -, com a tradição e a memória do FC Porto, não está sujeita a escrutínio, a variantes, a condições de nenhum género. Sou portista mesmo que o FC Porto esteja a jogar mal. Portista na irritação, portista na alegria.

Como surgiu essa admiração pelo clube dos azuis e brancos?
Eu vivia em Chaves quando era miúdo. Havia naturalmente, a proximidade do Porto – mas nada me empurrou tanto para o FC Porto como a proximidade com Pavão, de cujos pais nós éramos vizinhos. A morte de Pavão foi um acontecimento surreal e trágico na minha vida de pequeno adepto (eu tinha doze anos) do FC Porto. Eu tinha chegado a essa condição depois de achar que aquela pergunta «és do Benfica ou do Sporting?» não tinha sentido nenhum, era um pouco irritante. De modo que, aos oito anos, comecei a dizer que era do Porto, apesar de ter um pai sportinguista. Ninguém da minha família era ou ficou benfiquista, o que já era uma vantagem. O FC Porto, nesses anos, não era nada do que é hoje. Não era uma equipa marginal, nem pouco mais ou menos, mas tinha poucos adeptos – os suficientes para não me sentir sozinho. Depois, o Carlos Magno foi também, creio nesses anos, um factor de «inspiração clubística», uma vez que éramos vizinhos, que tínhamos relações familiares… quase primos, no fundo. Sabe?, no fundo eu gostava de dizer «sou do FC Porto» nesse mundo cheio de benfiquistas e de sportinguistas… Estava sozinho na escola, quase sozinho no liceu, mas tinha orgulho. No Pavão, sim. Tinha muito orgulho no Pavão.
Recorda-se do primeiro jogo a que assistiu? Pode partilhar connosco essas memórias?

Quando era criança assistia aos jogos do Foz Côa e do Moncorvo, por exemplo. Depois, aos jogos do Chaves, de que fui sócio. Do FC Porto via os jogos pela televisão… Não havia o hábito de nos deslocarmos de Chaves para o Porto para ver um jogo. Nessa altura, uma viagem dessas levava conco horas… Coisa curiosa: o primeiro jogo que vi nas Antas foi o da segunda mão da Supertaça 1980-1981. Tínhamos perdido por 2-0 com o Benfica e eu já vivia em Lisboa. Com outro colega de faculdade metemo-nos no comboio e fomos às Antas ver o jogo, que ganhámos por 4-1. No dia seguinte, quando chegámos à faculdade, éramos seis ou sete portistas no bar da faculdade a festejar. Eu gostava dessa equipa… Sousa, Jaime Magalhães, Walsh, Frasco, Rodolfo, João Pinto, Murça, Lima Pereira, Costa…

Costuma acompanhar o clube? Até onde já foi capaz de ir pelo FC Porto?

Acompanho quando posso, e vejo os jogos com os meus filhos. Olhe, já andei 700 quilómetros pela Patagónia argentina para poder ver um jogo pela televisão, com o Braga.

Como vive os jogos? Prefere o “calor” do estádio o conforto e privacidade do sofá?

São coisas diferentes, mas a chama é a mesma. No estádio gosto de ir com amigos, ou com a família. Mas já fui sozinho. Um dia fui a um Alverca-FC Porto, sozinho, no meio da chuva para ver um golo do Jardel. Em casa tenho um problema, porque um dos meus filhos, o mais velho, fica muito mais nervoso do que eu. No estádio, são eles que me acalmam…Quem salva sempre tudo com o seu optimismo é a minha mulher. Optimista, entusiasta, uma verdadeira «hooligan»… Ela tem sorte: no estádio nunca assistiu a nenhum empate nem a nenhuma derrota do FC Porto.

Gostaria de lançar algum desafio ao FC Porto? Qual?

Que repense a sua utilização de jogadores nacionais. Que os use mais. Isto é, parece mal num adepto que festejou golos do Cubillas, do Madjer, do Juary, do McCarthy, do Jardel, do Deco, do Lisandro e do Lucho… Mas tenho uma certa saudade absurda daquelas equipas «quase totalmente portistas». Sei que as realidades financeiras, hoje, são muito mais complexas, mas enfim, é um desafio…
É difícil ser fiel em termos clubísticos? Digo isto porque nem sempre os Dragões viveram dias felizes. O passado construiu-se em território nebuloso…
Difícil? Não acho. Um gragão é um dragão para momentos difíceis ou para alturas mais felizes. E o futebol não é do domínio da racionalidade pura – também tem um pouco de matéria de fé. Como o golo de Costinha no último minuto daquele jogo em Manchester… Nesse momento, o meu telemóvel já estava cheio de mensagens de amigos benfiquistas. O FC Porto tem uma gestão positiva, e uma direcção com esse módico de racionalidade que falta ao adepto. Eu sou adepto, não posso contentar-me com as explicações do prof. Jesualdo Ferreira, quero sempre mais. Um adepto é sempre assim, a meio caminho entre a alegria absoluta e o descontentamento. Mas nunca infiel. Acha que passou pela minha cabeça, naqueles tempos de Octávio-Couceiro-Fernandez, ser adepto do Barcelona ou do Real, ou do Manchester, como aconteceu com os Benfiquistas do final da era Damásio e durante o consulado Vale e Azevedo? Nunca. Ser do FC Porto não é apenas esperar resultados positivos. Claro que faz parte. Mas ser do FC Porto implica correr riscos, conhecer dificuldades, esperar desilusões, aguardar alegrias. É a história da cidade, também, uma cidade burguesa que vive do seu trabalho, que sempre teve de lutar contra o centralismo, contra o favoritismo do regime, contra o isolamento (e contra os jornais desportivos de Lisboa…).

Muitos dos adeptos portistas mais velhos falam-nos em dias difíceis para os amantes do FC Porto…

É provável. Tanto a imprensa desportiva como os organismos nacionais do futebol gostariam que fosse o Benfica a ganhar tudo… Manejam, manipulam… Como escrevi recentemente, «abriu a caça» ao FC Porto. Mas hoje as realidades são diferentes. Viu-se com o epifenómeno do «apito dourado» especificamente dirigido contra o FC Porto, uma pequena vergonha nacional que só desprestigiou a justiça e os organismos desportivos, nomeadamente a Liga – que manifestamente prejudicou um dos grandes emblemas portugueses, o mais internacional dos clubes portugueses desde 1974. Essa intenção de prejudicar e desrespeitar o mais importante clube português foi um escândalo, sem falar da coisa pouco honorável que foi ver dois clubes, como o Benfica e o Guimarães, a lutar na Suíça contra o FC Porto, como miseráveis «queixinhas». E ver, também, como a liga seguia as opiniões e pareceres do Benfica. São dias difíceis porque o Benfica está há muito tempo sem ganhar no relvado, no campo, que é onde os campeonatos se ganham.

O que é que na sua opinião mudou de forma a permitir ao clube tomar novos rumos e atingir o topo que ocupa actualmente? Até a nível internacional…

Uma gestão de risco, imaginosa e profissional. Uma mudança de mentalidade que permitiu encarar Lisboa de frente, sem medo. Uma coragem e bravura que marcou os grandes planteis do FC Porto. O trabalho de Jorge Nuno Pinto da Costa. E o fim do regime anterior, em 1974, que protegia e venerava os seus clubes de eleição… Isto tudo.

Romancista, poeta, jornalista, editor, gastrónomo, blogger, estudioso do judaísmo, transmontano, portista. Como prefere ser identificado?

De tudo um pouco. Sou um pouco de tudo isso. A vida das pessoas não é feita apenas de uma coisa, nem de um só momento – há coisas que vão e voltam, que desaparecem e reaparecem. Mas pode dizer-se, sim, que essas são as coisas mais permanentes na minha vida. Ser portista é uma delas. Mesmo nos momentos difíceis. E, às vezes, sobretudo nesses momentos.

A maioria das suas obras policiais têm o Porto cidade como cenário privilegiado. De onde vem essa adoração pela cidade? Têm algo a ver com o clube? Considera que o FC Porto é o grande ex-líbris da cidade como algumas pessoas gostam de referir? E para o país?

Todos os meus livros policiais se centram no Porto, sim. E até tenho uma certa pena que sejam, às vezes, ignorados no Porto. O detective dos meus livros é um portista de eleição, conservador, discreto, com uma adoração especial por Teófilo Cubillas… A cidade é uma das cidades do meu coração – sou puco nacionalista, nessa matéria. Gosto do Rio de Janeiro, de Roma, de Jerusalém, de Buenos Aires, do Porto… São cidades onde me sentiria bem a viver. Agora, quanto ao FC Porto, sim – evidentemente que a cidade deve muito ao FC Porto, que a internacionalizou e a colocou nas rotas europeias do futebol e dos média. Seria uma pena não o reconhecer. Só por provincianismo balofo, por pequenez, por ressentimento, se pode negar essa evidência, que o FC Porto projectou o Porto e o país no estrangeiro.

Acredita que existe a falada “magia azul-e-branca”?

Acredito que houve momentos mágicos na história do FC Porto. Cada adepto tem os seus, tem as suas recordações de magia absoluta. O título europeu de 1986, o derradeiro golo de Capucho, o primeiro golo de Cubillas, certo passe de Rodolfo, a direcção elegante de Domingos, a correcção de Rui Filipe, a segurança de Jorge Costa, o olhar de Vítor Baía, tantos momentos. O que existe, sim, certamente, é também a sensação de que o FC Porto é a tribo que nos representa.

Escreveu a dada altura que “quanto mais prejudicarem o FC Porto, mais pontos acumulam. No final, têm direito a aplauso e, quem sabe, a promoção na carreira. Para esta gente, os campeonatos de futebol deviam ganhar-se por televoto”. Considera que existe alguma espécie de preconceito face aos dragões? É isso que dá ainda mais garra ao FC Porto?

É um dos factores, sim. Mas é bom que o FC Porto não actue apenas por reacção contra esse preconceito contra os dragões… Essa ideia de que o país é benfiquista, ou de que a maioria do país é benfiquista, até tem graça. Porque diz mais do valor do FC Porto, que não se intimida com estatísticas ou multidões. Durante certo tempo, chegou a sugerir-se que o FC Porto não tinha inteira legitimidade para ganhar títulos nacionais, porque havia dois clubes maiores do que o nosso, e que a derrota de um deles, o Benfica, era mau para a economia, para a auto-estima, para as paixões nacionais. Sinceramente, estou-me nas tintas para essas coisa. Isto, de que falamos, é futebol, só futebol. No fundo, é só a vida como ela merece ser vivida. Quero lá saber de quem é o maior… Quero é que o FC Porto seja o melhor.
É um portista em Lisboa. É difícil?
Já foi muito, muito mais difícil. Um dia, quando eu participava num programa de televisão sobre futebol, defendendo o FC Porto, esfaquearam-me os pneus do carro… E era difícil, nesses anos, afirmar-se publicamente como portista. Mas isso foi há muito tempo. Hoje, um portista só deve ter orgulho, em Lisboa ou em qualquer outra parte.

A “guerra” Porto – Lisboa é um reflexo da rivalidade no futebol ou o contrário?

Não gosto muito de falar da «guerra» Lisboa-Porto. São belas cidades. São cidades que não podem ser prejudicadas. É preciso, evidentemente, respeitar o Porto, mas creio que devem ser as pessoas do Porto as primeiras a fazê-lo - não alimentando o discurso provinciano, queixinhas… Mas valorizando o Porto, fazendo-o melhor, mais apetecível. Lembro-me do tempo em que as pessoas de Lisboa vinham ao Porto e ficavam maravilhadas com a cidade, com a sua animação, a sua beleza, o seu rio, o seu mar,, o seu ar monumental, a sua originalidade, a sua criatividade, o seu «picante», a simpatia das lojas, dos restaurantes… Ainda hoje é assim… sem dúvida que as lojas e os restaurantes do Porto são muito mais simpáticos e de maior qualidade do que os de Lisboa. Simplesmente, não basta sê-lo. É preciso divulgar essa imagem. A imagem da cordialidade portuense, da generosidade portuense, do espírito de iniciativa portuense.

José do Carmo Francisco, também escritor, afirmou um dia que 0 “Futebol é um espelho da Sociedade na qual está inserido”. Concorda com esta expressão? Porquê?

Claro que sim. Subjacente a tudo está uma questão de carácter, de espírito, de comunidade.

Considera que o mundo do futebol é rico em matérias ficcionais, nomeadamente quando se mencionam as “relações sombrias e obscuras do mundo do futebol”?

É rico mas não é apenas por isso, que é apenas episódico. É também porque o futebol é uma metáfora das paixões e dos jogos humanos. Porque o futebol, bem jogado, é o espectáculo mais bonito da Terra. Um símbolo das relações comunitárias. Uma espécie de geometria da perfeição humana – um passe bem colocado, um baile de Quaresma, um arranque de Hulk ou um golo de bruno Alves.

Enquanto jornalista nunca teve problemas ao assumir o seu clubismo?
Não, nunca. Toda a gente sabia. E digo-lhe mais: era preferível que as pessoas soubessem as filiações desportivas dos jornalistas do que esses jornalistas passarem por «independentes» e serem, às vezes, porta-vozes dos clubes, fazendo «jeitinhos» ou atacando o FC Porto de forma despudorada. Nada como a transparência. Sim senhor, e tal, sou sportinguista, sim senhor, mas é a vida, estou a fazer o meu trabalho, tentarei que ele seja o melhor, o mais fundamentado, o mais correcto.
Considera que o tratamento jornalístico dado às questões relacionadas com o futebol e o desporto em geral é bem orientado?

Em relação ao futebol, na maior parte dos casos há uma certa dualidade de critérios e nota-se o alinhamento em relação «ao glorioso»…

Já tem novos projectos em curso?
Um novo romance, ainda sem título, que há-de sair em Outubro de 2010 (agora saiu O Mar em Casablanca). Antes disso, quatro livros: um novo guia de cervejas (o anterior tinha 100 cervejas, este conta com 500), um livro de viagens sobre o Brasil, a reedição do meu primeiro romance (Regresso por Um Rio, um elogio ao Douro, o meu rio) e um livro de memórias sobre o Palace Hotel de Vidago, um dos lugares mais bonitos de Portugal.
Enquanto homem ligado à cultura, considera que o meio futebolístico tem espaço para receber e fomentar cultura? Tal como se pretende através da publicação da “Mundo Azul”?

Todo o espaço. Há uma relação entre a cultura e o futebol: depende da forma como se olha o futebol, como um jogo que opera no tabuleiro das emoções e dos afectos entre os homens e as mulheres. Não é possível olhar o futebol como um território burlesco e anedótico. É uma metáfora da vida e do destino humanos.

Entrevista publicada na revista "Mundo Azul" de Fevereiro 2010

CONSELHO CULTURAL DO FUTEBOL CLUBE DO PORTO

2 comentários:

dragao vila pouca disse...

Ó Des Contente, tinhas aqui isto e não dizias nada a ninguém e foi preciso o Para Lá da Lua me dizer? És um amigo da onça!

Se calhar um dia vou copiar isto e fazer um post. Tenho a tua autorização?

Um abraço

Des Contente disse...

Claro, adiante.
Abraço.