domingo, 23 de maio de 2010

"A radiosa felicidade de uma filha da guerra"

Histórias: A menina da foto

A radiosa felicidade de uma filha da guerra

por ABEL COELHO DE MORAIS (DN/on-line/hoje)

Vítima quase fatal de um ataque aéreo, Kim Phuc, quando se encontrava num hospital de Saigão, no momento da maior dor e incerteza, decidiu que nunca abdicaria do seu direito à vida. Hoje, dirige uma fundação que procura proporcionar às crianças o mesmo que ela conseguiu alcançar.

Imagem-símbolo da Guerra do Vietname é a fotografia de 1972 em que uma menina corre nua, com o corpo em chamas entre outras crianças, numa estrada nos arredores de Saigão. A menina tem hoje 47 anos, chama-se Phan Thi Kim Phuc e desde daquele 8 de Junho de 1972 coube-lhe viver um doloroso e excepcional trajecto.

Naquele dia, a pequena povoação de Trang Bang, ocupada há 48 horas pelo exército norte-vietnamita, estava sob ataque da 25.ª Divisão sul-vietnamita, que pedira apoio aéreo. A população procurara refúgio num pagode próximo. O ruído dos aviões assustou o grupo, em que estava Kim Phuc, levando-o a deixar o templo. Ao abandonarem o pagode, os civis são tomados por efectivos comunistas e atacados pela aviação.

Kim Phuc, cujo nome significa "felicidade radiosa", recorda a explosão de quatro bombas de napalm junto à estrada. Dois dos seus irmãos tiveram morte instantânea. "Vi o fogo à minha volta. O calor era infernal. Rasguei a roupa, mas tinha o corpo a arder", recordou mais tarde. A sua sobrevivência deve-se ao fotógrafo indonésio Nick Ut, da AP, que fixou o momento da pequena vietnamita em chamas (ver caixa).

Uma biografia da vietnamita, The Girl in the Picture, de Denise Chong, descreve o que se passou. Com queimaduras de terceiro grau e o queixo preso ao peito por cicatrizes da carne e músculos queimados, a jovem foi sujeita a 17 intervenções cirúrgicas em dois anos. É neste período que decide não se resignar à sorte de ser mais uma camponesa, manipulada pelos norte-vietnamitas ou hostilizada pelo seu próprio Governo. Phuc decide estudar medicina.

Apesar da cirurgia reconstrutiva, as costas de Kim Phuc representam a mais eloquente topografia da dor crónica a que está condenada a conviver até ao fim da sua vida.

A adolescente e as suas marcas de guerra foram uma espécie de exposição permanente utilizada pelo regime de Hanói até 1986, quando a autorizou, finalmente, a prosseguir os estudos em Cuba sob apertado controlo.

Demasiado tarde para prosseguir medicina, Phuc opta por farmacologia. É em Havana que conhece o seu marido, outro estudante de informática vietnamita, Bui Huy Toan. Ele e Kim Phuc depressa se convencem que o futuro tem de ser algo diferente da sucessão de viagens Havana-Moscovo-Hanói, em que não passam de meros peões dos rituais de propaganda da Guerra Fria.

Numa escala para reabastecimento num aeroporto da Terra Nova, em 1992, entre Moscovo para Havana, Phuc e o marido conseguem sair do avião e pedir asilo político no Canadá. Toda a bagagem ficou para trás para não levantarem suspeitas.

Começava uma nova etapa da sua vida. Uma etapa marcada pelo nascimento do segundo filho do casal, pela reconciliação com o antigo adversário e a acção a favor das crianças a viverem em ambientes de conflito militar. Visita Washington uma primeira vez em 1996, onde profere uma intervenção junto ao monumento aos militares americanos no Vietname.

No ano seguinte, é nomeada embaixadora de boa vontade da UNESCO e cria a Fundação Kim Phuc para apoio às crianças filhas da guerra, como ela. Para que estas tenham, pelo menos, a hipótese de iniciar o caminho para a felicidade que uma menina vietnamita de nove anos nunca desistiu de procurar.

Porque nunca é demais recordar.

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